A intervenção Federal no Rio de Janeiro – uma visão popular
Por muitas vezes, encontramo-nos em situações emergenciais que traem nossa racionalidade e deixam aflorar instintos adormecidos no subconsciente, com atitudes quase reflexas e descontroladas, como no caso da invasão de um assaltante lar adentro, empunhando uma arma, sob o efeito de substâncias psicotrópicas, ou seja, ele também sem o controle pleno de suas atitudes.
Não raro, instintivamente, para a defesa da prole, um pai, mesmo desprovido de qualquer aspecto heroico, age como uma leoa enfurecida para a afastar o perigo iminente aos filhotes. A comparação deve guardar as proporções adequadas, não observadas nesse caso fictício. Mas o que fazer, se o lar há muito vem sendo rotineiramente visitado por estranhos que insistem em lhe impor o modo específico de se conduzir, submetendo-se a um código não escrito, mas com alto poder de coação?
Por vezes, o herói prevalece, no primeiro caso. Mas a reiteração da conduta, no segundo caso, sempre acarreta o mal a quem não se deixa subjugar.
A intervenção Federal na Cidade Maravilhosa, denominação saudosista de uma metrópole, e não só o Forte de São Sebastião, tomada como refém da criminalidade, que se consolidou durante décadas de isolamento entre os moradores dos morros e as autoridades constituídas, criando um abismo social e geográfico, tornando as favelas (hoje comunidades) quase que autônomas e administradas por um poder paralelo, permanente e ostensivo, a tratar quem de lá não seja, como alienígena cuja presença é tolerada e observada, devendo o eventual visitante cumprir à risca as normas consuetudinárias a todos impostas. Criou-se um modelo de sistema social independente, em que traficantes, milicianos e outros tantos rotulados procuram impor sua vontade, num sistemático controle de serviços públicos, como um todo, desde a entrega de gás ao serviço de correios, passando pela distribuição de pontos de tv por assinatura.
ONG’s, igrejas que professam todos os credos, sociedades civis, todos têm que se submeter aos (des)mandos dos “donos do morro” para realizarem qualquer tipo de trabalho voltado à alimentação espiritual.
Com o tempo, essa realidade foi se sedimentando, sendo comum a bala perdida, o estopim de tiros altas horas da noite, de dia, a qualquer momento; o incêndio de coletivos e as barricadas de pneus. Quanto não já viram o comércio e os colégios cerrando as portas pelo luto de um traficante, idolatrado como benfeitor.
É essa inversão de valores que se busca interromper, com uma atitude de gosto amargo, ruim mesmo, mas que se pretende mais eficiente que as medidas anteriores, as quais se demonstraram inócuas, como o uso das Forças Nacionais e até mesmo as operações de Garantia de Lei e Ordem.
Certo que, durante os tempos de presença dos Comandos nas comunidades, respirava-se um clima de paz, mas que não suportava por muito tempo, após a saída desses grupos.
A diferença é que agora se trata de uma intervenção específica nos setores da segurança pública do município do Rio de Janeiro, apoiada pelos mais interessados, ou seja, a população refém do crime organizado.
Não se sabe a logística, as medidas persecutórias que serão de pronto adotadas, mas, em se tratando do chamado “freio de arrumação”, de pôr a casa em ordem e expurgar o poder paralelo, há de se presumir, primeiro, o fechamento das portas de saída, sob pena de transferir o problema para outro território, o que seria inadmissível; a perseguição implacável dos atores principais dessa tragédia humana, com o respeito aos direitos individuais dos cidadãos pertencentes às comunidades e que têm raízes profundas fincadas naqueles solos; o triunfo do estado de direito e a restituição da cidadania plena àqueles que, por tanto tempo, se viram tolhidos de direitos básicos inerentes a todos os brasileiros.
Não há, portanto, espaço para tergiversar, para fazer uso político das medidas necessárias, em franca divagação e insensibilidade ao que vem ocorrendo, num momento em que o clamor social é escutado além das fronteiras do território nacional.
Portanto, que se faça o necessário e indispensável para o resgate desse povo sofrido, que, mesmo diante de tanta adversidade, apresenta, como estandarte, um sorriso de confiança e aquele brilho afetivo no olhar; esse mesmo povo que insiste no caminhar gingado e no falar cantante, mesmo trazendo no rosto profundas rugas de expressões, de sofrimento e estupefação, de quem apenas quer voltar aos tempos da boa, velha e inocente malandragem a desfilar pelas ruas boêmias, pacíficas e bonitas por natureza.
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*Sormane Oliveira de Freitas é advogado no Estado do Ceará.
Fonte: Migalhas